Por detrás do picadeiro
Uma vida dedicada ao circo, as dificuldades, mudanças constantes e o dom de alegrar pessoas.
A música começa, as cortinas se abrem e dentre elas surgem malabaristas, mágicos, trapezistas, palhaços e uma enorme quantidade de personagens que nascem quase que diariamente. O sorriso no rosto de cada um destes artistas, a disposição e habilidade com que se apresentam dão a impressão que há ali um mundo mágico, colorido e perfeito. E realmente há. Principalmente quando esse mundo é habitado por pessoas que amam o que fazem. A perfeição, no entanto, aqui se refere a escolha feita por cada um. A escolha perfeita em se fazer o que ama.
Contudo, um artista de circo necessita obrigatoriamente ser polivalente. Uma hora palhaço, na outra o administrador, o apresentador. Uma hora a malabarista, na outra a personagem Peppa Pig, a ajudante do mágico, a vendedora de pipocas e de lembrancinhas circenses.
E é desta forma que vive Jonas Santos, secretário do Circo Rakmer. Sua trajetória profissional começou no rádio, nas cidades de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, onde construiu uma carreira de 18 anos como radialista. Até que certo dia, recebeu um convite do proprietário do Circo Moscou para integrar o quadro de funcionários. Porém, como não atuava artisticamente, ele passou a trabalhar na área administrativa, ou seja, licenciar o circo nas prefeituras, corpo de bombeiros e vigilância sanitária. Além disso, se tornou responsável por divulgar o circo nos meios de comunicação de cada cidade. “Hoje, com o avanço da internet, esse trabalho ficou muito mais fácil. No tempo em que comecei, o trabalho era especificamente com a rádio e o carro de propaganda do próprio circo”, comenta.
Natural de Pelotas, no Rio Grande do Sul, Santos aprendeu com o passar do tempo a lidar com a distância de alguns familiares. “Meus netos moram em Pelotas, mas falo com eles pelo Whatsapp todos dos dias. Além disso, o fato do Circo Rakmer estar no Rio Grande do Sul, ir à Pelotas é rapidinho. Mas geralmente, se visita a família uma vez ao ano, o que é tranquilo para se lidar”, observa.
O fato de não possuir uma casa fixa também não parece incomodar o secretário, já que conforme ele, estar em outras cidades possibilita conhecer muitas coisas novas. Ele explica que todas as pessoas que vivem no circo possuem gostos diferentes, e buscando fazer as coisas que se gosta os dias ficam mais fáceis. "Eu por exemplo gosto de comida. Gosto de experimentar pratos novos, já outros gostam de Shopping, balada, etc. E desta forma você vai se acostumando com esta vida e tem em cada colega de trabalho a sua família. O circo é como se fosse uma grande casa, e cada trailer um quarto. Moramos no trabalho e convivemos todos os minutos com as mesmas pessoas. Aqui somos entre 40 e vivemos algo fantástico, pois temos os mesmos vizinhos, mas sempre em terrenos diferentes”.
O Circo Rakmer é da cidade de São Paulo e integrava um conjunto de circos do Beto Carrero. Com a morte do artista, muitos circos que integravam este grupo seguiram seus caminhos na coordenação de seus administradores, em sua maioria, famílias com uma história de vida no mundo circense.
Em estadia em Candelária, o administrador do circo Henrique Chulves, também é o palhaço Xumbrega e o narrador do espetáculo. Nascido na quarta geração circense de sua família, Chulves relata que entre as dificuldades enfrentadas por uma criança que vive no circo, está a frequência escolar. “As crianças do circo têm que estudar, e então temos que frequentar as aulas até o dia que o circo fica na cidade. Assim seguimos de escola em escola, e no fim do ano juntamos as notas e avaliações para ver se há condições de mudar de turma”, explica.
Há três anos fora do circo devido ao casamento com uma advogada que já possuía clientela na cidade de São Paulo e também pela vontade de acompanhar o crescimento das filhas, Chulves atualmente trabalha no ramo automobilístico, em Águas de Lindóia, interior de São Paulo. A temporada no Circo Rakmer é um momento para matar as saudades e também para cobrir as férias do atual proprietário.
Apaixonado pela arte circense, Chulves ressalta que o circo é uma escola e que toda pessoa deveria ter a oportunidade de passar por um circo. “Aqui no circo não se encontra um só tipo de pessoa ou artista. Aqui vivem motoristas, eletricistas, soldadores, enfermeiros, advogados, engenheiros. A minha esposa, por exemplo, é advogada, e nos conhecemos no circo. Quando começamos a namorar, ela largou tudo para me acompanhar. Depois, quando nossas filhas entraram em idade escolar, optamos por fixar uma residência, com uma vida mais tranquila, comum”.
No entanto, ele garante que a saudade do trabalho nos picadeiros é imensa. Quando chega o período das férias escolares, a família toda já festeja por saber que o destino nas férias é uma boa temporada em algum circo, já que a vida no circo lhe proporcionou conhecer muitas pessoas e fazer muitas amizades.
Ser palhaço é a sua função preferida no espetáculo, apesar de também atuar como trapezista e malabarista. No circo, conforme Chulves, todos precisam saber fazer várias coisas. “Precisamos estar prontos para tudo no caso de alguém se machucar. Mas amo ser palhaço, que na minha opinião é a alma do circo. Pode faltar o malabarista, o trapezista, mas o palhaço não”.
O SHOW – Antes de entrar no picadeiro a emoção e a naturalidade se misturam entre os olhares dos artistas. A correria por detrás da cortina é grande.
De um lado, o pai de família se transforma no personagem do Super Homem, destaque da noite no trapézio, enquanto o filho de apenas dois anos olha admirado a roupa justa e colorida utilizada no trabalho do pai.
Assim que Chulves pronuncia a tradicional frase “senhoras e senhores, muito boa noite”, e a música sobe de volume, o que se vê nos bastidores, do outro lado da cortina, são mulheres retocando o batom, o cabelo, a roupa. Homens vestindo fantasias, fazendo exercícios para aquecer o corpo. A emoção é evidente, está nos olhos de cada um. Assim que anunciado, o artista levanta o olhar, abre um largo sorriso e incorpora o personagem da vez.
No caso do palhaço Xumbrega, o personagem de Chulves, a preparação começa cerca de uma hora antes com a maquiagem, que é feita por ele mesmo. Chulves comenta que no dia-a-dia, possui um comportamento mais fechado, mas assim que os traços da maquiagem começam a ganhar forma em seu rosto, é como se algo mudasse dentro dele. “Nos primeiros anos fora do circo foram muito difíceis, por que chegava a hora de eu me maquiar e não tinha mais a necessidade. Eu ficava totalmente perdido. É um momento único e transformador”.
Mesmo diante das diversas dificuldades enfrentadas na estrada, como acidentes de trânsito onde se perde quase tudo, o lado familiar de quem trabalha em circo é muito forte. “Temos dificuldades e não são poucas, mas aqui, quando estamos nos mudando de uma cidade para outra e alguém começa a demorar, o pessoal já vem atrás pra ajudar. Nos preocupamos uns com os outros. Aqui há amor em tudo o que se faz”, destaca.
Palhaço de alma e coração, Chulves demonstra em cada palavra a paixão pela profissão. Sentado em um confortável sofá no trailer onde mora durante suas viagens, ele encerra ressaltando que para a vida valer a pena, o importante é fazer o que se gosta, seja qual for a profissão.
CIRCO RAKMER | Espetáculo em Canoas/RS
Show do palhaço Chumbrega