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Um lugar para chamar de Lar
Crianças e adolescentes, afastadas do convívio familiar, encontram na Casa de Passagem de Vera Cruz abrigo e companheirismo

Domingo, 6 de novembro de 2016. Após quase uma semana de tratativas com a assistente social, chegou o dia de ir conhecer a Casa de Passagem de Vera Cruz. O local é um lar para crianças e adolescentes, dos 12 aos 18 anos, em situação de vulnerabilidade social, que por medida de proteção são acolhidos com ordem judicial. Saí de casa por volta das 13h50. O celular marcava 29°C, mas dentro do carro parecia bem mais quente. O sol brilhava forte e não havia nada de vento. Senti a pele arder, mesmo estando protegida pela lataria do veículo. Arrependi-me por não ter passado o protetor solar. Mas era tarde e eu já estava a caminho.
 

De casa até lá foram oito quilômetros. Encontrar o lar não foi difícil. Meu ponto de referência era a Igreja São José, em Linha Henrique D’Ávila, e antes de começar a me preocupar se estava no caminho certo, já avistei a torre do templo cristão. A Casa de Passagem fica no lado oposto da igreja. Contornei a rua e ingressei no caminho de chão batido, cercado por árvores.
 

Ao descer do carro fui recebida por Susi, uma cadelinha simpática que abanava o rabo sem parar enquanto olhava para mim. Pode parecer loucura, mas tive a sensação que ela queria me dizer: bem-vinda, estranha. Loucura ou não, aquilo fez eu me sentir em casa.
 

Já na área externa da residência, três jovens caminhavam em minha direção: Gabriel Barboza da Silva, 21 anos, monitor responsável por cuidar do local e outros dois meninos, moradores do lar, de 14 e 17 anos. Chamaremos os jovens de João e Pedro, para preservar suas identidades, direito assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
 

Gabriel me recebeu com um sorriso largo. João, 14 anos e Pedro, 17, ainda estavam um pouco tímidos. Me olhavam desconfiados. A timidez era tanta que quase não ouvi o nome de João na primeira vez que ele se apresentou. Mas o acanhamento foi só neste primeiro contato e não demorou para que eles revelassem a natureza brincalhona, típica de garotos nesta idade.
 

Feitas as primeiras apresentações, os rapazes se apressaram em me mostrar a casa. Um dos meninos fez menção ao quarto estar bagunçado e sorriu envergonhado. Apressei-me em dizer que isto era normal e contei que há dias em que meu quarto também fica “de pernas para o ar”. Seguimos com o nosso tour pela moradia.
 

A casa possui dois banheiros, um para os meninos e um para as meninas. Atualmente a instituição abriga cinco adolescentes. Três garotas, de 16 anos e os dois garotos já mencionados. Há também uma sala com um jogo de sofás e televisão, uma pequena cozinha e o quarto dos monitores, que também é aproveitado como despensa.
 

A casa conta ainda com dois quartos. Eles são grandes e bem arejados. Três grandes janelas deixam passar a luz e o ar fresco. Os quartos são mobiliados com três camas cada e roupeiros de duas portas. Um para cada morador. O quarto das meninas tem as paredes pintadas de rosa, enquanto o dos meninos é colorido pela tonalidade azul. Procurei identificar resquícios da bagunça que o jovem havia mencionado anteriormente e, para ser sincera, não encontrei nada fora do normal.


Existe ainda uma área aberta, que vai de uma ponta a outra da residência. O pátio conta com muitas árvores, o que garante sombra em abundância. Todo aquele verde contrasta com o marrom da poeira presente na região, que há algum tempo aguarda pelo asfalto. No lado direito da moradia há um campo de futebol, com goleiras de ferro. A grama é aparada pelos próprios adolescentes, que ajudam nas tarefas domésticas. Mas, estava um pouco alta, pois o aparador havia quebrado. Além da jardinagem, os moradores da Casa de Passagem também ajudam na manutenção de uma horta, mediante projeto implantado em parceria com a Emater/RS-Ascar, do município. A produção no quintal rendeu. Tanto que eles mal vencem comer os alimentos. Conforme Maria*, 16 anos, que mora na Casa de Passagem há quatro, eles recebem alimentos toda segunda-feira. Então, nem sempre aproveitam os legumes que vêm da plantação.
 

Gabriel explica, porém, que o objetivo de ensinar os adolescentes a mexer e manter uma horta foi atingido. Esta é outra função da Casa de Passagem. Além de acolher crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, a instituição também se preocupa em inseri-las no meio social e no mercado de trabalho. Para isso, além de ir à escola, os adolescentes também participam de cursos profissionalizantes. “A nossa intenção é formar cidadãos”, garante Gabriel, que é monitor no projeto há seis meses. Entre os quatro profissionais que trabalham no lar, revezando-se em turnos de 12 por 36 horas, ele é o “recém-chegado”.
 

Entre os cursos que já foram realizados, eles citam empreendedorismo, marcenaria, mecatrônica e eletrônica, todos ofertados pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). Além disso, os jovens frequentam a escola no período da manhã. Alguns dias da semana, eles possuem atividades integrais no educandário, nos demais, têm as tardes dedicadas ao estudo, auxílio nas tarefas domésticas, um cochilo da tarde e lazer. Em uma planilha organizam quem ficará responsável por determinada tarefa e em que dia da semana. Uma forma de dividir o serviço da casa e garantir que todos irão fazer a sua parte.
 

Conforme Barboza, durante a semana o horário para dormir é mais regrado, já que os adolescentes têm aula no outro dia e precisam acordar cedo. Por isso, costumam ir dormir por volta das 21 horas. Já nos finais de semana eles aproveitam para assistir filmes ou jogar jogos de tabuleiro. Nestes dias é comum irem para a cama por volta da meia-noite.
 

E por falar em fins de semana, eles costumam ser animados para os moradores da Casa de Passagem, principalmente no verão. Segundo os adolescentes é praxe entre eles planejar passeios para balneários ou cidades que possuem pontos turísticos históricos, como o Aqueduto, em Candelária, que já foi visitado pelo grupo. Conforme a assistente social Gabriela Ferreira, a Casa de Passagem recebe recursos do Governo Federal e do município. Porém, para casos de passeio em locais onde é preciso pagar entrada, estes recursos não chegam. Como os jovens recebem Bolsa Família, aproveitam este dinheiro quando querem realizar uma atividade diferente.
 

Além dos passeios, eles também recebem, nos fins de semana, visitas de familiares ou então vão visitar os parentes. Estar na Casa de Passagem não significa não ter família. Conforme Gabriela, o local trabalha com a revinculação familiar (quando possível) ou busca pela família extensa, como tios, irmãos. Mas, nem sempre os familiares têm condições de acolher estas crianças e, por isso, elas ficam na Casa, onde recebem cuidado e proteção e sonham com um futuro melhor.
 

Maria*, por exemplo, tem 16 anos. Há cinco está na Casa de Passagem junto com o irmão, João*, 14 anos. Ela conta que seus pais se separaram quando eles eram crianças. A guarda, inicialmente, ficou com a mãe. No entanto, o pai conseguiu reverter à situação e ganhou a tutela das crianças. O problema é que, conforme conta Maria, ele era usuário de drogas e bebia muito. “Vivíamos atirados pela rua”, lembra ela. Antes de ir para a Casa de Passagem, as crianças foram acolhidas pela Associação Comunitária Pró Amparo do Menor (Copame). Ao completar 12 anos, foram redirecionados para a Casa de Passagem.  Maria explica que eles não podem voltar a ficar com a mãe, pois o companheiro dela é violento.
 

Mas na Casa de Passagem, a jovem, além de estar junto ao irmão, tem a possibilidade de planejar o seu futuro. Animada, conta que pretende no próximo ano, ingressar na Escola Família Agrícola (EFA). Sua inscrição até já foi feita. Agora ela aguarda pelo dia 19 de dezembro, quando fará uma prova e redação para tentar conseguir uma vaga. Na EFA os estudantes aprendem, além de disciplinas básicas como Português e Matemática, a lidar com a tecnologia aplicada ao campo. A escola segue o modelo de alternância. Neste estilo os alunos passam uma semana no educandário e outra em casa, quando podem colocar em prática os ensinamentos aprendidos em sala de aula.


Como qualquer adolescente, Maria está na fase de descobrir a paixão. Há cinco meses namora um jovem que conheceu em uma festa na cidade. Na realidade, conforme conta ela, o encontro deles aconteceu antes do evento. No mesmo dia ele havia passado pela rua em frente à Casa de Passagem e, de acordo com ela, aconteceu uma troca de olhares. Coincidentemente, ambos foram ao mesmo local algumas horas depois, onde tiveram a oportunidade de conhecerem um ao outro e iniciar um relacionamento sério. Nos fins de semana ela recebe a visita do namorado ou então vai visitá-lo.


Violência é maior causa para distanciamento do convívio familiar
Segundo Barboza, assim como no caso de Maria, o motivo que costuma levar crianças e adolescentes à Casa de Passagem, na maioria das vezes, é a violência, que obriga os jovens a serem afastados do convívio familiar. Também já passaram pelo local, meninas vítimas de abuso sexual, praticado por pessoas muito próximas e até mesmo um caso envolvendo uma jovem que tinha seu corpo vendido pela própria mãe.
 

A assistente social Gabriela Ferreira explica que, como a Casa atende crianças e adolescentes, dificilmente ocorrem adoções e, em alguns casos, quando não há impedimento legal, eles retornam para suas famílias. Mas antes é feito um acompanhamento por parte de uma equipe de suporte da Secretaria de Desenvolvimento Social do município, para ter certeza que o jovem pode voltar à familia. Além disso, enquanto estão no lar os adolescentes recebem acompanhamento psicológico a cada 15 dias.
 

Lar surgiu em Vera Cruz há 5 anos

A Casa de Passagem de Vera Cruz completou em 2016 meia década de existência. Conforme Gabriela, ela surgiu de uma necessidade e determinação do Poder Judiciário e Ministério Público do município. Não há um tempo determinado para que as crianças e adolescentes acolhidos fiquem lá. Alguns voltam para suas famílias ou passam a viver com tios, irmãos, entre outros parentes próximos. Outros têm na Casa seu verdadeiro lar. Como é o exemplo de Pedro, Maria e João, que moram na Casa há cinco anos.
 

As outras duas jovens que também estão atualmente no local chegaram há menos tempo. Moram na instituição há cerca de um ano. Outra “recém-chegada” na família é Susi, a cadelinha que mencionei no início desta reportagem. Ela foi adotada pelos moradores e hoje já faz parte da família, que deve aumentar com a chegada de seus filhotes.
 

Assim como em qualquer lar onde moram diversos adolescentes juntos, vez ou outra acontece algum desentendimento nesta grande família. Conforme aponta Barboza, é questão de personalidade, afinal, são diferentes personalidades convivendo sob mesmo teto. Maria, Pedro e João, por já estarem há mais tempo no lar, costumam ser mais unidos, enquanto as gêmeas defendem uma a outra. Quando a discussão sobre o que vão assistir na televisão está em polvorosa, por exemplo, os monitores entram em ação para apaziguar os ânimos e bater o martelo referente à programação televisiva.


Ainda que haja alguns desentendimentos, é perceptível que a relação dos moradores da Casa de Passagem é de muita cumplicidade. Cada um que ali chegou tem sua própria história, mas, a partir da convivência no lar, eles vão escrevendo juntos uma nova trajetória, regada de companheirismo, apoio e muitos sonhos.

Foto: Débora Pricila Silveira

Cercada por árvores, Casa de Passagem fica na zona rural de Vera Cruz

Foto: Débora Pricila Silveira

 Crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social têm na Casa um lar.

Foto: Débora Pricila Silveira

Estar na Casa de Passagem não significa não ter família. 

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